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AIR FRANCE 447


Falha na Interação Tripulação x Aeronave, Cultura de Segurança Pobre e Catástrofe


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Espera-se mais da segurança de aviões do que de outros equipamentos ?  A falha de um  instrumento básico de indicação de velocidade pode parecer muito mais complicada do que realmente é quando este equipamento faz parte de uma aeronave.  As pessoas tem cristalizado em sua cultura geral que tudo numa aeronave é complexo, sofisticado e difícil  de ser operado.  Quando se fala em comandar uma aeronave, a imagem do cockpit cheia de indicações, relógios, botões vem logo a mente e faz com que as pessoas acreditem que as atividades dos profissionais na cabine de um aviáo sejam para "super homens".

Essa percepção é irreal, pois toda aquela complexidade foi projetada e testada para ser operada por pessoas normais.  Aliás quanto mais normal, melhor será o operador.  Visão normal, audição normal, coordenação normal, racicínio lógico normal, etc etc são os fatores relevantes do perfil de um bom operador ou piloto.  O perfil dos melhores operadores e pilotos é muito mais um conjunto de normalidades equilibradas e confiáveis do que uma lista de super habilidades atípicas e imprevisíveis.

O pesquisador britânico da área de Fatores Humanos James Reason[1], abordou o tema sob três perspectivas:  psicológica comportamental, cognitiva (informação) e natural (orgânica).  Segundo Reason, pela abordagem natural do erro humano, a memória primária do homem é a responsável pela percepção imediata.  Mas a quantidade de itens memorizáveis depende se houver ou não a associação entre esses itens.  O limite na quantidade de itens memorizáveis pela memória primária sem associação entre si (ou seja, sem confundí-los), segundo James Reason, é de no máximo sete itens.  Por isso em geral as salas de controle de usinas nucleares, cockpits de aeronaves e outras estações de controle, são projetadas para requerer o gerenciamento máximo de 6 informações simultâneas e diretas durante uma emergência (funções críticas de segurança).  Um sétimo canal de informação fica em aberto para a comunicação externa.  Pelo menos essa seria a condição correta a ser definida em projetos de salas de controle e cockpits.

Há uma grande confusão entre as dificuldades do longo caminho de preparação e estudo até que uma pessoa possa trabalhar num cockpit de aeronave, e as atividades que são demandadas no comando ou pilotagem de uma aeronave.  O estudo e preparação exigem muita dedicação, persistência e habilidades que podem sim parecer tarefa de “super homem”, mas pilotar ou comandar uma aeronave deve necessariamente ser uma atividade natural e tranquila para aqueles que realmente chegaram até o cockpit de comando devidamente preparados.  Se ficam confusos, nervosos ao ponto de perderem os canais de percepção então ou não foram preparados para a função, ou a aeronave foi mal projetada, ou ambos.  Considerando isso, pilotar um avião ou dirigir um automóvel pode exigir demandas congnitivas e motoras semelhantes e responsabilidades iguais sobre vidas humanas.

Poderíamos então perguntar:  se o velocímetro do seu carro quebrasse no meio de uma viagem, isso seria motivo justificável para você bater num poste ou cair num precipício matando todos os passageiros ?  Guardadas as proporções técnicas, em termos de gerenciamento de riscos e segurança, aconteceu algo bem semelhante em junho de 2009 com os 228 passageiros do vôo AF 447 que decolou do Rio de Janeiro com destino a Paris.

Entenda a comparação:  Suponha que o seu carro tivesse um piloto automático que permitisse que você ficasse sentado, na frente do volante, assistindo toda a evolução do veículo pelo trajeto.  Por alguma razão o velocímetro parasse de funcionar e o computador que controlasse o piloto automático simplesmente o desligasse por falta de informação sobre a velocidade.  Neste momento, você que é motorista e está na frente ao volante, deveria assumir o controle do mesmo bem como do acelerador e do freio passando a conduzír o carro manualmente, sem o uso do piloto automático.  Se a falta do velocímetro causasse maiores complicações, você poderia fazer uma parada interrompendo a viagem para corrigir as falhas do equipamento.  Caso contrário, mesmo sem o velocímetro e sem ferir o código de trânsito, você como motorista conduziria o carro até seu destino final, talvez com um pouco mais de trabalho, mas em segurança.

O que aconteceu no cockpit do voo AF 447 foi uma demonstração de despreparo técnico da tripulação, resultado de uma Cultura de Segurança equivocada capaz de gerar projetos “hi-tech” mas que subestimam a importância do elemento humano na tomada final de decisões em emergências.

Tubo de Pitot, inventado no século XVIII


O tubo de pitot, um instrumento de medição de velocidade bastante conhecido inventado no século XVIII congelou enquanto a aeronave atravessava uma tempestade sobre o Atlântico.  O tubo de pitot, é um instrumento relativamente simples que mede a velocidade da aeronave através da comparação de pressões decorrentes do deslocamento de ar e depende que pequenos furos do instrumento estejam desobstruídos para que funcione perfeitamente.  Em geral, as aeronaves possuem mais de um instrumento como esse,  justamente para o caso de haver falha.  Além disso tais instrumentos são mantidos aquecidos por sistemas auxiliares justamente para evitar o congelamento.  Lamentavelmente algo falhou e o tubo de pitot congelou bloqueando os orifícios e impedindo a medição de velocidade.  Trata-se de um equipamento muito conhecido, e praticamente todos os engenheiros mecânicos construíram um protótipo de tubo de pitot durante sua formação acadêmica nas aulas de laboratório de mecânica dos fluidos.  Mas mesmo assim, o equipamento falhou.  Mas apenas isso não seria suficiente para derrubar a aeronave.  Há inclusive outros meios de se obter a velocidade, mas manter a aeronave em condições mínimas para manutenção do vôo não depende exclusivamente do tubo de pitot.

Os sofisticados sistemas de automação que tem se proliferado em nossos tempos desde os eletrodomésticos em nossas casas até as aeronaves, dependem de um volume de dados coletados por uma rede de instrumentação, que inclue por exemplo no caso do Airbus 330 o tubo de pitot.  Estes dados são tratados por sistemas lógicos complexos e reduzem a demanda congnitiva daqueles que são responsáveis pelo controle do equipamento (pilotos).  Mas isso não significa que tais operadores, ou no caso, os pilotos possam abrir mão do conhecimento técnico necessário para conduzir o equipamento em situações de emergência, onde o ingrediente “imprevisibilidade” sempre está presente.  Para lidar com a “imprevisilidade”, sempre presente nas emergências, nada melhor e mais sofisticado do que o cérebro humano bem preparado, capaz de medir consequências, considerar aspectos subjetivos e imprevisíveis o que coloca os computadores em um patamar de inferioridade.

AF 447 deixou 228 mortos em junho de 2009

 

AF 447, Sem Automatismo e Sem Piloto


No voo AF 447 o automatismo no comando da aeronave parou de funcionar por falta de dados sobre a velocidade devido a falha do tubo de pitot.   Os pilotos atualmente passam a maior parte do tempo supervisionando o voo e não de fato pilotando.  Os treinamentos também consideram essa realidade gerada pela cada vez maior sofisticação dos sistemas de automação e não prepara suficientemente a tripulação para situações em que, durante uma emergência eles tenham que pilotar a aeronave.  Trata-se de um problema de cultura de segurança.  Determinadas culturas de segurança, “encantadas” com a inteligência contida nos sofisticados sistemas de automação, acabam por considerar a capacidade humana inferior ao que de fato é, o que é uma falha grave.  Mais que isso, os defensores desse grau de automação exagerada que de certa forma minimiza a capacidade da intervenção humana, na realidade supervalorizam o seu próprio trabalho teórico de elaboração e projeto destes sistemas.

A inteligência fascina,  os sistemas extremamente automatizados formam uma espécie de "registro de inteligência", e encantados com suas próprias obras primas de automação os fenômenos físicos, químicos bem como a imprevisibilidade da natureza são subestimados por alguns projetistas.  Há uma ilusão de que os sistemas extremamente automatizados estejam preparados para quase tudo e sejam mais seguros.  É apenas uma ilusão, talvez uma vaidade técnica.  O que os acidentes ensinam é que a simplicidade é amiga da segurança.

Pelos registros da caixa preta e conclusões do relatório final elaborado pelo Escritório de Investigações e de Análises (BEA) da Aviação Civil da França, quando o problema aconteceu a tribuplação do voo AF 447 ficou muito mais preocupada em tentar recuperar a automação da aeronave do que propriamente em assumir as ações de vôo manual e manter as condições mínimas de controle necessárias para manter as condições de voo.  Isso pode indicar a possibilidade de “medo de pilotar”, ou "medo de operar" -  comportamento típico de operadores que se afastam das atividades de rotina em decorrência de excessiva automação em suas tarefas.  Desatentos em relação á visão do “todo” e com o comandante mais experiente ausente da cabine, poucos segundos de confusão foram suficientes para selar o destino de um voo previsto para cerca de 10 horas.  Voos de longa duração como esses, na rotina dos atuais pilotos talvez se constituam de cerca de 9 horas de supervisão e uma hora de “real pilotagem”.

Uma sucessão de erros de pilotagem básica e a total incapacidade de entender o cenário fizeram com que os Fatores Humanos se alinhassem a uma cultura de segurança pobre desde o projeto, e assim fosse construída uma catástrofe.

 

O que fazer para evitar novas catástrofes como AF 447 ?


Depois que uma catástrofe acontece, encontrar inúmeras falhas associadas ao evento não parece tarefa difícil.  Principalmente quando elas recaem especificamente sobre aqueles que além de responsáveis, também foram vítimas.

De uma forma ou de outra, todo o acidente tem alguma relação com uma falha humana.  Mesmo que um eixo ou chapa estrutural da fuzelagem se rompesse, pelo menos um erro humano relacionado com a manutenção, gestão ou projeto original teria sido cometido.  Portanto todo acidente envolve erro humano.  O pior é que o erro humano é mesmo inevitável, pela natureza bem conhecida dos seres humanos.  A solução de gerenciamento de riscos que permite a elevação da segurança é reduzir ao máximo os fatores que possam propiciar o erro humano, para que quando este venha a acontecer não chegue a provocar uma catástrofe como aconteceu com o AF 447.

Indo mais além, é preciso desenvolver uma cultura de segurança onde os projetos de automação tenham limites de complexidade, uma vez que a segurança é mais “amiga” da simplicidade do que do conforto.  O excesso de automação. além de gerar vulnerabilidades operacionais, pode afastar os operadores e pilotos do entendimento cotidiano dos fenômenos físicos, químicos que estão envolvidos em suas atividades técnicas.  O mais importante para a segurança é agir conscientemente, entendendo o fenômeno e por conseguinte o cenário de cada instante da operação e do voo.  A partir do momento em que os operadores e pilotos concentram sua capacidade cognitiva em entender “sistemas de automação”, alguma coisa está errada pois não é essa sua atividade fim.  É bom lembrar que se existe uma automação ela foi construída com base na experiência anterior de pilotos que puderam fornecer parâmetros e informações para a construção das lógicas destes sistemas.  

Ou seja, a automação e os procedimentos operacionais reúnem o que se acredita ser o melhor do conhecimento acumulado sobre aquela atividade, mas não pode garantir 100% de solução para tudo que possa acontecer na realidade operacional.  A atividade fim de um piloto ou operador de qualquer máquina ou instalação, é insubstituível e indispensável, além de sempre estar acima da importância da atuação de qualquer máquina.  Investir na sensibilidade do operador em relação aos fenômenos com os quais lida, é investir em segurança.

Uma lição aprendida fica deste acidente para a segurança de todos os empreendimentos tecnológicos.  Níveis de automação devem ter limites.  O cérebro humano bem treinado ainda é o melhor, mais sofisticado e eficiente equipamento para gerenciar crises em emergências. 

Estes são conceitos fundamentais que precisam ser enfatizados e incluídos na cultura de segurança adotada nos empreendimentos tecnológicos.  Afinal, com o grau de evolução tecnológica de nossos tempos, os recursos de automação sempre oferecerão mais um passo em direção ã substituição do homem pela máquina.  Não apenas em aeronaves, mas nas indústrias, usinas nucleares, e até em cirurgias através do uso de robos capazes de realizar cirurgias mesmo à distância.  Não há nada de errado em toda essa tecnologia, mas caso os robos e computadores parem de fazer seu trabalho conforme projetado durante um vôo ou cirurgia, o cirurgião, por exemplo, deve estar preparado para enfrentar a proximidade com o pacientte, seus orgãos e seu sangue já que estes são os componentes que jamais deixarão de fazer parte de sua atividade fim.



[1] REASON, J.  Human Error.  Cambridge University Press, 2003. 302p.


O sucesso de um empreendimento tecnológico está associado ao respeito aos fatores humanos, ambientais, econômicos e sociais que estão sob sua influência. Bons valores estabelecem a boa Cultura de Segurança !