Naufrágios Habitam o Inconsciente Coletivo
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100 anos se passaram e fica a certeza
de que grandes naufrágios habitam o inconsciente coletivo reforçando imagens
universais que existem desde os tempos mais remotos.
O desafio de navegar é
tão antigo que
nem é possível precisar como e quando exatamente o homem iniciou sua
jornada pelas
águas. Mas é fácil reconhecer que a
simples visão da imensidão do mar desperta sentimentos desafiadores. Vários fatores formam a idéia de desafio associada à navegação, seja a natural vontade de ver além do
horizonte, o medo do desconhecido, a
possibilidade de que algo melhor possa estar do outro lado das águas, a
possibilidade do isolamento, da solidão em alto mar, a energia e o
poder das
ondas e tempestades, a presença de baleias, tubarões, cardumes. Alguns relatos históricos
chegam a imaginar cidades e
civilizações subaquáticas, tesouros perdidos e monstros assustadores. Navegadores vislumbram conquistas e temem derrotas,
buscam sucesso e temem o fracasso, confiam no porto seguro e temem o
naufrágio, sempre encontrando nas águas o pano de fundo para a busca da
superação.
O mar e os céus talvez sejam os
maiores desafios explícitos e objetivos para a curiosidade humana. Não precisam de palavras nem de uma cultura
específica para serem compreendidos como tal.
Simplesmente apontam para nossos limites, tanto para os limites físicos
como os do conhecimento.
Se observarmos o dia a dia, tais
sentimentos fazerm parte de diversas situações nas vidas das pessoas e o
desafio das águas apenas nos coloca frente a frente, de forma objetiva com uma
realidade que se repete incessantemente a cada momento: nossas limitações.
Acidentes aéreos e
naufrágios parecem causar sentimentos especiais sobre as pessoas. Muitas vezes, acidentes rodoviários e
ferroviários causam um número de fatalidades superior mas parecem não exercer o
mesmo poder de chamar a atenção, despertar o interesse, nem de gerar tanto questionamento.
Talvez seja mais fácil entender e aceitar
que uma composição de vagões possa descarrilhar e perder o rumo do que um navio naufragar
ou um avião cair. Não há nada de lógico
nisso mas há muitos sentimentos coletivos que ampliam a magnitude de alguns tipos de acidentes.
Teoricamente deveria ser o contrário, pois os céus e o mar são habitats naturais para outras espécies e nossa presença lá obviamente seria “menos natural” e os acidentes menos surpreendentes. Não é isso que acontece. Especialmente o mar, por ser um desafio perseguido por séculos por nossos antepassados, parece gerar no inconsciente coletivo uma reação diferenciada quanto aos acidentes navais, nos atingindo em relação a nossa real capacidade de superação de limites. Pode haver no inconsciente coletivo qualquer coisa de “ponto de honra abalado" que diminua nossa autoconfiança na tecnologia quando um naufrágio acontece.
Teoricamente deveria ser o contrário, pois os céus e o mar são habitats naturais para outras espécies e nossa presença lá obviamente seria “menos natural” e os acidentes menos surpreendentes. Não é isso que acontece. Especialmente o mar, por ser um desafio perseguido por séculos por nossos antepassados, parece gerar no inconsciente coletivo uma reação diferenciada quanto aos acidentes navais, nos atingindo em relação a nossa real capacidade de superação de limites. Pode haver no inconsciente coletivo qualquer coisa de “ponto de honra abalado" que diminua nossa autoconfiança na tecnologia quando um naufrágio acontece.
A repercussão do naufrágio do Titanic
que até hoje não foi esquecido
que até hoje não foi esquecido
Qual a importância disso para o
Gerenciamento de Risco ?
É muito importante para os gestores
entender que estes aspectos subjetivos ou “arquétipos” [1]
compõem a parte submersa do “Iceberg da Cultura de Segurança”. Justamente aquela parte que fica oculta onde
residem os fatores mais importantes para que as pessoas, organizações e
sociedades tomem decisões sobre a aceitação ou não de determinado risco.
Acidentes aéreos e naufrágios
simbolizam um questionamento sobre a sensatez de desafiarmos os limites além de
nosso habitat natural. Esse
questionamento é registrado e guardado pelas pessoas como parte de sua experiência
e entendimento. Esse conjunto subjetivo
exerce grande influência na aceitação de riscos de cada pessoa ao longo da
vida, sejam os pessoais como os profissionais.
Talvez os naufrágios tenham um peso ainda maior do que os acidentes
aéreos pois existem desde a antiguidade, incomodando e construindo o
inconsciente coletivo das pessoas há mais tempo, em
relação à aceitação ou não de riscos.
Titanic e Costa
Concórdia são um
exemplo da importância dessa influência.
O Titanic transformou-se de símbolo de capacidade tecnológica em
símbolo
de fracasso tecnológico em apenas uma noite, 15 de abril de 1912 quando
naufragou com mais de 1500 vítimas fatais.
Hoje em dia, praticamente em todo o planeta o nome Titanic significa
“algo que deu muito errado”. O desastre
do Titanic tem muitas versões fantásticas que complementam as
evidencias
objetivas e históricas, mas estas versões não devem ser totalmente
desprezadas porque de
fato fazem parte do “Iceberg da Cultura de Segurança” e portanto
influenciam
também na predisposição das pessoas em aceitar ou rejeitar riscos,
mesmo que todos saibam que tais versões não sejam verdadeiras. Quando
citamos o modelo
do “Iceberg da Cultura de Segurança”, lá na origem desta ilustração
tavez
esteja também incluída a informação registrada no inconsciente coletivo
de que icebergs ocultam riscos e afundam navios.
Já o naufrágio do Costa Concórdia,
ocorreu quase exatamente 100 anos depois, em 13 de janeiro de 2012, justamente
quando o emblemático naufrágio do Titanic está sendo mais relembrado. O naufrágio do
Titanic não foi o maior e mais dramático da história e muitos outros desastres de
mesmas e até maiores proporções ocorreram nesses 100 anos (Kichemaru, The
Empress of Ireland, Montblanc, Wilhelm Gustloff, Estônia e muitos outros) mas
nenhum ficou tão registrado no inconsciente coletivo das pessoas como o
Titanic. O número de vítimas fatais do
Costa Concórdia foi de 32 pessoas, mas a repercussão e o impacto do acidente no
inconsciente coletivo somou-se aos efeitos dos 100 anos de influência exercida
pelo Titanic. Uma série de
questionamentos sobre a navegação foram levantados, em especial sobre os aspectos
de segurança offshore.
A cobertura da operação de resgate no Costa Concórdia
foi transmitida ao vivo para todo o mundo
foi transmitida ao vivo para todo o mundo
A seguir apresentaremos uma comparação
sobre alguns dos principais aspectos relacionados com os dois acidentes onde é possível
encontrar semelhanças e diferenças que irão também continuar a alimentar o
inconsciente coletivo das pessoas por muito tempo:
CAUSAS
DO ACIDENTE
Tanto o Titanic como o Costa Concórdia
incluem como uma das razões para os naufrágios uma falha dos seus
Capitães. No caso do Titanic o Capitão é
acusado de não dar a devida atenção ao alerta sobre a presença de icebergs na
rota, enquanto que o Capitão do Costa Concórdia está sendo acusado de se
desviar da rota e navegar em região não compatível com o calado do
transatlântico
TOMADA
DE DECISÃO NA HORA DA EMERGÊNCIA
Em ambos os acidentes há indícios de
que houve falta de liderança e organização no momento de tomar a decisão de
abandono do navio. No caso do Titanic os
relatos conduzem a uma figura do Capitão em estado de choque, sem reação,
enquanto que no Costa Concórdia existe a suposição do Capitão ter retardado decisões
fundamentais perdendo a janela de tempo de tomada de decisão pelo abandono da
embarcação.
O
CAPITÃO É O ÚLTIMO A SAIR
Muitos pensam que essa
é uma norma ou
regra de segurança offshore, mas não é verdade.
Em alguns países esse conceito de permanência está ofcializado nas
regras, em outros não. É fato que esta é
uma das expectativas das pessoas, que o Capitão seja o último a
abandonar o
navio. No caso do Titanic o Capitão não
sobreviveu e isso preservou esse paradigma de permanência do Capitão
até o
fim. Não podemos afirmar com exatidão
se isso ocorreu conscientemente ou pelas circunstâncias, mas o
paradigma
foi mantido. Já no caso do Costa Concórdia, o Capitão abandonou a
embarcação
antes da operação de abandono ter sido encerrada, como se fosse uma
pessoa a
mais a tentar sobreviver (e não era ?).
Ele, mesmo que não fosse obrigado por normas a ser especificamente o
último a sair, era o responsável principal pela operação de escape e
abandono e
aparentemente não cumpriu sua obrigação.
A mais forte influência sobre o inconsciente coletivo das pessoas sobre
o acidente, é que o Capitão não cumpriu seu “script”, ou seja, a
história que tem sido narrada há um século sobre o que aconteceu com o
Titanic incluía o personagem do Capitão que permaneceu no navio e
afundou com ele, pagando inclusive pelos seus possíveis erros, mas essa
parte da história do Titanic não foi bem desempenhada
pelo Capitão do Costa Concórdia. A história do Titanic é muito famosa,
conhecida
e talvez esperada de ser repetida por aqueles que conscientemente ou
não, comparam os dois acidentes.
AUTORIDADES
MARÍTIMAS EXTERNAS
No caso do Titanic não
tiveram uma
participação muito relevante, exceto quanto aos alertas sobre a
presença de
icebergs na rota, os quais foram ignorados pelo Capitão o que se tornou
uma das
causas diretas do acidente. Mas no
acidente com o Costa Concórdia a autoridade marítima da Capitania dos
Portos
teve uma papel de destaque. Ao contactar
o Capitão do Costa Concórdia e ser informado por ele que o abandono
estava em andamento e que ele, o próprio Capitão estaria já fora do
navio sendo resgatado para
terra, a autoridade da Capitania dos Portos se indignou e proferiu
ordens carregadas de emoção e energia tentando convencer o Capitão a
retomar para cumprir sua
missão. Isso conquistou a opinião
pública e alguns passaram a considerar a autoridade da Capitania dos
Portos um
verdadeiro herói, mesmo não tendo em nenhum momento retirado os seus
pés de
terra firme. Analisando o episódio sob a
perspectiva puramente técnica, a autoridade da Capitania dos Portos
demonstrou
estar tão despreparado quanto o Capitão do Costa Concórdia para a
emergência. A autoridade em terra deveria sim tentar
mostrar ao Capitão o equívoco que estava cometendo ao deixar o comando
da operação
de abandono, mas o compromisso maior da Capitania dos Portos deveria
ser salvar
as vidas das pessoas no local do acidente.
Ou seja, se a autoridade da Capitania dos Portos estivesse realmente
bem preparada iria identificar que o Capitão não tinha naquele momento
capacidade
técnica, emocional ou comportamental para exercer suas obrigações e por
isso a
Capitania dos Portos deveria estabelecer uma nova liderança
imediatamente. Deveria por
exemplo, ele próprio, ao invés de agir emocionalmente querendo fazer o
Capitão
trabalhar na base do grito, assumir o comando da operação de abandono,
e se
necessário ir ao mar com os recursos da Capitania dos Portos, uma vez
que o navio estava muito próximo à costa. A condenação, as sanções
tanto
administrativas como criminais aplicáveis ao Capitão deveriam ser foco
das
atenções num segundo momento, e não em meio ao resgate de centenas de
pessoas
sem comando e sem liderança sendo realizado durante a noite no mar.
LOCALIZAÇÃO
O naufrágio do Titanic ocorreu em alto
mar com temperaturas fatais para a sobrevivência na água. Já o Costa Concórdia sofreu avaria numa
região muito próxima ao litoral, podemos dizer privilegiada em termos de
recursos de resgate. Isso foi decisivo
para fazer a diferença no número de sobreviventes nos dois acidentes.
RECURSOS
DE SALVAMENTO
O número de
embarcações de salvamento
do Titanic era inferior ao número de passageiros. Não havia lugares
nas embarcações de
salvamento para todos. Tais equipamentos eram extremamente limitados e
com muitos problemas técnicos principalmente
quanto aos meios de lançamento ao mar (turcos).
Na época a regulamentação técnica vinculava o peso do navio com o
número
de embarcações de salvamento obrigatórias. Engenheiros
alertaram a empresa responsável pelo Titanic dos problemas, tanto dos
turcos de
lançamento quanto da quantidade de embarcações, mas a empresa optou por
cumprir
as regras de segurança vigentes e incluiu apenas 16 embarcações de
salvamento no
Titanic, suficiente para atender apenas 33% das pessoas a bordo. É
preciso ir muito além do cumprimento de regras e normas para se
alcançar a segurança. Depois do acidente, uma reformulação completa
das normas de segurança marítmia ocorreu.
Foi criado o SOLAS (International
Convention
for the Safety of Life at Sea) que estabeleceu regras muito mais
consistentes sobre equipamentos de sobrevivência em situações de
emergências
marítimas. Estas regras promoveram uma
evolução das embarcações de salvamento, dos turcos e demais
equipamentos de
segurança ao longo destes 100 anos pós Titanic. Um século depois,
o Costa Concórdia era equipado com embarcações de salvamento e turcos
de última geração e em quantidade suficiente para atender pelo menos o
dobro da
quantidade de passageiros, uma vez que tando de um lado como do outro
do navio, havia embarcações de salvamento suficiente para 100% das
pessoas. O problema mais crítico é que
tais embarcações só podem ser lançadas até uma inclinação máxima do
navio e essa inclinação é atingida após uma janela de tempo desde o
início do
acidente. O Capitão sempre deve avaliar a
situação e iniciar o abandono dentro da janela de tempo disponível para
lançamento das
embarcações de salvamento, antes que se torne impossível a operação de
abandono, como aconteceu no Costa
Concórdia. Outro aspecto importante é
lançar as embarcações de salvamento totalmente lotadas. Se as
primeiras embarcações forem lançadas com lugares vazios, no final
poderá faltar
lugares para as pessoas nas últimas embarcações a serem lançadas. Isso
aconteceu no Titanic.
As embarcações de salvamento do Costa Concórdia eram
de última geração, mas a maioria não pôde ser utilizada
porque o atraso no lançamento ao mar levou o navio a um
ângulo onde isso seria tecnicamente impossível
de última geração, mas a maioria não pôde ser utilizada
porque o atraso no lançamento ao mar levou o navio a um
ângulo onde isso seria tecnicamente impossível
EMPRESAS RESPONSÁVEIS PELA EMBARCAÇÃO
Em ambos os acidentes
há críticas ao posicionamento das empresas responsáveis pelos navios.
No caso do Titanic as acusações são de ordens
para seguir viagem a todo custo e o estabelecimento de um ambiente de
euforia e excesso de auto
confiança. Já com relação ao Costa
Concórdia as acusações são de se querer fazer propaganda do navio
fazendo-o
navegar por regiões incompatíveis com sua classe e porte. Certamente
grande parte da parcela de
responsabilidade por ambos os acidentes pode ser atribuída com justiça
às empresas
responsáveis por ambos os navios.
Mas alguns dos produtores e diretores de filmes sobre o Titanic em
Hollywood, quando
indagados sobre algumas acusações até então desconhecidas contra a
empresa
responsável pelo Titanic as quais foram incluídas nas últimas versões
do cinema, responderam que mesmo não havendo base no
histórico do acidente, tais possibilidades são pisicologicamente tão
interessantes tanto para
quem conta como para quem assiste a narrativa do acidente, que eles
como produtores e diretores
de Hollywood não poderiam deixar de cair na tentação de incluí-las,
mesmo com certa dose de irresponsabilidade em
relação à fidelidade histórica. Mais uma
ampliação dos efeitos do naufrágio sobre o inconsciente coletivo das
pessoas.
LIÇÕES
APRENDIDAS
O naufrágio do Titanic teve imensa
repercussão em sua época e continua tendo mesmo 100 anos depois. Houve uma completa reformulação das regras de
segurança depois do acidente que na realidade foi o início de um processo de
evolução da segurança marítima. Apesar
de ter aconcecido há mais de um século atrás, o Titanic está fortemente
presente na mídia principalmente por cerca de 8 filmes de longametragem com
versões de sua história. Já o impacto do
naufrágio do Costa Concórdia foi ampliado pelo fato do acidente ter ocorrido
muito próximo da costa, com acesso fácil dos veículos de comunicação de massa,
em local de grande interesse turístico.
Um outro fator que colaborou para a repercussão do acidente foi
justamente a analogia imediata com o mais famoso naufrágio do mundo,
Titanic. Ambos com passageiros
desfrutando do luxo e sofisticação dos melhores transatlânticos de sua época. Ambos com personagens e atores executando
seus “scripts”. Ambos associáveis a
dúvida de cada pessoa sobre a capacidade humana de superação dos limites naturais.
A principal lição dos naufrágios é que
temos limites em relação à natureza e nunca devemos subestimá-los. Isso é tão forte que faz parte de nosso
inconsciente coletivo. E serve não apenas para navios, mas para qualquer empreendimento tecnológico que o homem pretenda fazer.
VER MAIS
[1] Carl Gustav Jung, psiquatra suiço e fundador da psicologia analítica
O
sucesso de um empreendimento tecnológico está associado ao respeito aos
fatores humanos, ambientais, econômicos e sociais que estão sob sua
influência. Bons valores estabelecem a boa Cultura de Segurança !